Sincronicidades 26 de maio de 2021

começa assim: quando era pequenina inventava mundos. e histórias. ia deslizando as pessoas, a cara delas, as cores, a espessura das linhas, os tamanhos, as tortuosidades. vou chamar de imaginação. as falas. eu ouvia as falas. um dia, era meu aniversário e eu estava na escola. agarrei-me no portão amarelo a ver a rua, a cara quase grudada no portão, o nariz quase passando pelo buraquinho do gradeado. um não sei o quê suave e quando vi a mão acenava para alguém que não estava lá. uma menina que tava perto me deu um olhar esquisito e perguntou para quem eu estava dando tchau se não tinha ninguém ali. descobri senti que era secreto, eu só tinha imaginado que a amiga vitória com quem eu queria estar brincando passava no carro com a mãe. só que as vezes eu queria voltar. ouvir outra vez. ver alguns detalhes. criar outros. fazer uma dobrinha ali, aonde? já foi embora? hm. experimentar ver mais lento, ou largar outras coisas. não sei bem o que era mas descobri que as vezes precisava falar para ver por mais tempo e comecei a falar. “era amarelo?”. “era”. “o que foi que ela disse mesmo?”. “não, não era assim”. um dia no carro minha mãe me perguntou se eu estava falando sozinha. outras vezes me perguntaram isso, ou “isadora, com quem você está falando?”. o melhor era contar. “to imaginando uma coisa, mãe”. e contava, descrevia aquilo que estava criando. ela ria.

aquilo que estou pensando agora? não é o mesmo que perguntar: com quem você está falando? até tem uma beleza essa pergunta.

Isadora Dantas – Lisboa – Portugal

Lá está lisboa lisboando. Lindo dia de calor. Escadas flutuantes de sol. O caminho é feito de só como o caminho é feito. Penso que a atenção é uma coisa redonda. Esférica. Tem infinidades de fios de seda que se entrelaçam e se confundem. Cada um com a sua própria tensilidade. Os fios da atenção são como os fios que tecem o corpo. Quando deixam de ser matéria e passam a ser atenção? Quando deixam de ser atenção e passam a ser matéria? Esfericidade da atenção. E depois há um bando de pássaros que voa lá ao fundo e isso também me lembra da atenção.

Às vezes um mesmo pensamento traz arrastadas coisas tão diferentes.. Por exemplo uma história que ouvi na aula do Jean-Marc, misturado com uma cena do filme uma mulher de sucesso com a melanie griffith, com a ideia de kant de que a coisa em si não pode ser conhecida…e lá por trás eu achando que esse alinhamento está dizendo qq coisa que tem a ver com esse primeiro pensamento que já nem me lembro o que era.

Cheiro de refogado simples na esplanada aqui atrás.

Já há mais pessoas arrastando as malas. Penso no imprevisível do previsível e no previsível do imprevisível.

Rapazes de calções com as barrigas das pernas tensas transportam 6 garrafas de água e 48 garrafas de cerveja. e um pacote de batatas fritas.

I will survive! I will survive! como diz a canção.

Desta perspectiva as pessoas aparecem primeiro de cabeça e depois o resto do corpo por fatias à medida que sobem as escadas. Saem da terra como cenouras.

Não posso deixar de pensar que as pessoas se movendo são as pessoas pensando. Se não há dois flocos de neve iguais também não deve haver dois pensamentos iguais. Se nos forçarmos a pensar sempre a mesma coisa se calhar vivemos num filme da pixar, com os cabelos ondulando ao vento tal e qual como se fossem reais…

O cão olha para trás. O cão existe.

Fundamentações de rosa. Um prédio atravessado no meio da paisagem.

A grande felicidade de poder escrever.

Cheiro de água estagnada.

Restos de ninhos de andorinhas.

Margarida Agostinho – Lisboa – Portugal

are we humans or are we dancers?

nunca mandam nada para portugal – nada exceto o chicletes de melancia da bárbara – pássaros a cantar no pôr do sol do martim – temaki a encarecer no chiado – vim me perguntar à escrita ao pé de uma escada que não é de subir nem de descer – da próxima vez vais cantar, algum dia? – águas escuras do chafariz moderno lembram brasília – a pretensão de seriedade e retidão, ordem e progrécio impossibilita o ser da Terra de produzir, de ter um contato mais singular com o que é a produção –

contatos com o azul

desnudo a pupila ao olhar para o traço que a colina faz com pedaços de céu

umas linhas de árvores, casas, prédios, castelos e uns arbustos que se fingem de árvores

louca a cor de tudo, mais à frente: uma porta de vidro quebrada com mil ranhuras

o partir-se de um só golpe que quebra o centro e irradia o mal de um rio no vidro

música new age para a catástrofe curativa para transtornos de ansiedade medos

papéis e fitas-colas seguram o buraco

papéis e fitas-colas ocultam a grande rachadura

papéis e fitas-colas compõem com os veios

acidentes que ali se fizeram coisa prolhar

uma placa avisa que está fechado. um desenho do corpo que obedece a uma determinada cadência, para usar as palavras da margarida, que me fazem pensar no acarinhamento da bicha e no fato de que todos os corpos importam. um chamado xamânico que me faz escutar “corpo agora”.

tocar o som do marcador do tempo segundos relógio

tocar o som do marcador do tempo tudo é tudo o coração

perpassa a paisagem uma dureza de formação da pessoa na insistência de que o ter que fazer obrigatoriamente era bom

o bem o bom sempre ligados à obrigatoriedade como se os anjos cumprissem burocracias

obrigatoriamente era se desaparecer no que te disseram a única forma de existir que chamavam digna

um bom-mocismo que deixou marcas nas paredes escreveram muitos palavrões e riscaram X

um desejo de verdades inquestionáveis

também morava no antagonismo do monstro

que resvalava sempre no mesmo mau

Bernardo RB – Lisboa – Portugal

sinto uma ternura imensa pelas coisas, pelo poisar das formas, pelo demorar das formas…das formas documentadoras de movimento…aquele vaso grosseiro de barro vermelho acastanhado poisado junto a um bocado velho de uma árvore castanha avermelhada, entre elas um tubo ferrugento, vermelho, acastanhado, alaranjado, rumo aos paus que fazem de tecto a cair…4 ou 5 formigas mais perto de mim 2 tijolos alaranjados, um ao colo do outro, na diagonal…estou em plano inclinado, a cair para o verde, os verdes, do campo.

escrevo cores mas sinto texturas, temperaturas…o tal vaso grosseiro é irmão de um outro vaso grosseiro que se fez mais verde e que repousa lá mais ao fundo…talvez a demora deste ajuntamento de coisas castanhas, avermelhadas, alaranjadas tivesse convidado a intensidade dessas movimentações das cores que chamamos castanho, vermelho, laranja…já o outro brilha com menos sombra, é mais fresco no seu verdejamento pincelado com o acastanhado avermelhado do barro.

também junto ao ouvido-coração as teias de aranha se esbranquiçam enredando-se no esbranquiçado do muro velho, no branco sujo da caixa de cartão deformada, nos alguidares quase brancos…começa a cheirar a branco e vou poisar na brancura de umas plantas penduradas como gotas de branco, véu, asa, renda, sobre os arbustos e ervas…lá ao fundo os restos do poço rugoso alaranjado salta sobre as folhas brancas e mergulha nas flores laranja vivo escondidas no verde.

escrevo cores mas sinto toque, ternura, carícia…agora balanço entre o lilás das florzinhas do arbusto deste lado e as flores rosa forte a espreitar do muro.

escrevo cores e sinto cheiro, o cheiro que já lá estava conversando, os lençóis de cheiros navegando, se atravessando, brincando.

Sofia Neuparth – Vale Fuzeiros – Portugal

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